Quem quer democracia na China no fim das contas? (ou, os bons álbuns que ninguém ouviu)

23/09/2008

[agradecimentos ao nosso colega Fred, que me deu a idéia para esse post]

Certo, certo. Todos estão cansados de ouvir falar de “Chinese Democracy”, o muitíssimo aguardado (em mais de um sentido) novo álbum do Guns N Roses – mas desculpem aí, vão ter que ter um pouquinho de paciência. Fruto da imaginação delirante e obsessão maníaca do vocalista e mala de plantão Axl Rose, o disco já está sendo gravado e regravado continuamente há mais de 10 anos, tendo contado com uma quantidade enorme de músicos e custado uma verdadeira fortuna – segundo alguns cálculos, mais de 13 milhões de dólares. Já foram anunciadas, de modo oficial ou nem tanto, pelo menos sete datas de lançamento – todas, é claro, adiadas sem a menor cerimônia. Atualmente, diz-se que o processo de gravação e mixagem está encerrado, e que o disco pronto está na mão da gravadora – que, mesmo assim, parece um tanto quanto “sem pressa” de lançá-lo, se é que me entendem. A julgar pelas demos que vazaram na Internet (e que o humilde escriba, evidentemente, já ouviu), vai acabar sendo um disco pretensamente experimental, um bocado pretensioso e sinceramente um pouco maçante. E a hesitação da Geffen Records em permitir a democracia na China se justificaria por dois motivos: ou estou enganado, o disco é uma obra-prima e a gravadora está se preparando do melhor modo possível para ganhar uma bolada, ou o CD é bem o que eu acho que vai ser e eles estão pensando no que fazer para ao menos ‘empatar’ os gastos quando do lançamento…

Seja como for, “Chinese Democracy” pode ser o mais famoso álbum-não-lançado de todos os tempos, mas com toda a certeza não é o único. Muitas vezes o público se viu privado, pelos motivos mais diferenciados possíveis, de ouvir material gravado por suas bandas ou músicos favoritos – o que muitas vezes foi uma pena, mas em muitas outras pode ter sido uma sorte danada. Enquanto a pizza de calabresa não chega aqui em casa, vamos dar uma relembrada em algum casos históricos de discos que ficaram famosos justamente por não terem saído, assumindo muitas vezes um status lendário que pode ser justo ou nada ter a ver com a realidade. Preparados? Então, lá vai:

Get Back (ou “Let It Be – Naked”) – Beatles, 1969 – Como todos nós sabemos, os últimos anos da carreira dos Fab Four estavam uma tremenda bagunça – briguinhas, intrigas, drogas a granel, a Yoko Ono enchendo o saco, enfim. Uma desgraça. Em 1969, a idéia dos músicos era gravar um disco mais cru, mais direto e sem muitos truques de estúdio – algo que se distanciasse um pouco do “Sgt Peppers” ou do “Magical Mystery Tour” e os reaproximasse da sonoridade mais simples dos primeiros dias. Apesar do quebra-pau generalizado, o disco acabou sendo gravado e recebeu o nome de “Get Back”. Porém, o clima estava tão pesado que simplesmente desistiram de prensar o disco naquele momento – diz a lenda que algumas “test pressings” (tiragens limitadíssimas, feitas para dar o OK na masterização final) chegaram a ser feitas, mas é a típica raridade que muitos dizem ter visto mas ninguém realmente tem, sabem como é. Quando os chiliques amainaram um pouco, os rapazes de Liverpool preferiram fazer um disco todo novo ao invés de concluir o serviço deixado pela metade. Resultado: gravaram e lançaram “Abbey Road” e, tempos depois, o produtor-que-virou-grife Phil Spector foi contratado para resgatar as velhas gravações de “Get Back”, enchendo-as de truques de estúdio (ou seja, indo contra toda a idéia inicial) e as transformando em “Let It Be”. Durante décadas os beatlemaníacos falavam sobre o tal “disco perdido”, mas levou nada menos que 33 anos para que as gravações originais de “Get Back” fossem resgatadas e lançadas oficialmente com o nome “Let It Be – Naked”. Para muitos, uma versão melhor que a de Spector – outros, como esse que vos escreve, acham que Beatles soa bem de qualquer jeito e preferem não tentar decidir…

The Vanilla Tapes – The Clash, 1979 – Após o lançamento do (na minha opinião) menosprezado “Give ‘em Enough Rope”, a clássica banda punk demitiu seu antigo empresário Bernhard Rhodes e enfurnou-se em um estúdio minúsculo chamado Vanilla, que pouco mais era do que um “puxadinho” de uma garagem, para compor as músicas para seu novo álbum.  Depois de algumas semanas de trabalho, gravaram nada menos do que 37 músicas – e resolveram mandá-las para o produtor Guy Stevens, que queriam convencer a produzir o trabalho final. Entregaram a fita para o roadie Johnny Green, que deveria pegar um trem e entregar em mãos a demo para o potencial novo produtor. O problema é que Johnny dormiu no trem durante a viagem e acabou passando a estação na qual deveria descer. Quando acordou e viu onde estava, desceu do trem com tanta pressa que esqueceu dentro do vagão a fita com as demos do Clash, só percebendo depois da partida do trem a burrada que tinha feito. O disco acabou sendo regravado e lançado como o clássico álbum duplo “London Calling”, mas durante um quarto de século as gravações do Vanilla Studio foram dadas como perdidas. Seria esse o fim da história, mas o guitarrista Mick Jones resolveu fazer uma faxina no porão em 2004 e, como que por encanto, encontrou uma cópia de parte das gravações, cópia que ele mesmo havia esquecido que tinha feito. Hoje, das 37 faixas gravadas no Vanilla, 21 delas foram incluídas como um CD bônus em “London Calling – The Legacy Edition”, trazendo a historinha para um final feliz.

Electric Nebraska – Bruce Springsteen, 1982 – Para muita gente, “Nebraska” é o melhor disco de Bruce Sringsteen, e a sua atmosfera folk sombria e melancólica colocou-o entre os álbuns mais ‘cult’ da história. O que muitos não sabem é que o disco que todo mundo ouve é constituído, na verdade, de vrs demo do que seria o disco “definitivo”. Springsteen gravou essas demos no quarto de sua casa, usando um porta-estúdio de 4 canais – e, depois de aprovado pela gravadora, o disco recebeu uma produção propriamente dita, sendo gravado em um estúdio profissional com arranjos elaborados e etc. No entanto, ao ouvirem o disco que haviam terminado de gravar, Bruce e os demais envolvidos com a produção concluíram que havia uma qualidade sombria nas músicas que havia se perdido com o trabalho de estúdio. A decisão final foi lançarem as demos mesmo, do jeito que estavam gravadas – o máximo que fizeram foi um tratamento de áudio para retirar o ruído de fundo e corrigir o baixo volume da gravação. Fico imaginando o que a gravadora pensou de ter gasto dezenas de milhares de dólares em uma produção e acabar arquivando tudo e lançando as demos… Seja como for, desde que “Nebraska” saiu os fãs se questionam sobre como seria a vrs de estúdio do disco – batizada como “Electric Nebraska” para fins de diferenciação. Infelizmente, tudo indica que essas gravações não devem aparecer tão cedo, se é que vão aparecer um dia – o próprio manager de Bruce, John Landau, já disse mais de uma vez que “foi lançado o disco certo” e que acha “altamente improvável” uma edição do material arquivado…

Dream Factory / Camille / Crystal Ball – Prince, 1986 – Esse é um caso muito raro de “álbum perdido” que não é só um álbum, mas sim pelo menos três – e possivelmente sejam cinco ou ainda mais! Tentarei explicar. No início de 1986, Prince e sua banda de apoio The Revolution (liderada por duas mulheres, Wendy Melvoin e Lisa Coleman) viviam um momento de grande colaboração criativa, que alcançou o auge durante a produção de “Dream Factory”. Inicialmente um projeto para um LP de 9 faixas, acabou se tornando um disco duplo, e a febre criativa do trio Prince / Wendy / Lisa era tanta que a listagem de músicas do projeto ia mudando quase que semanalmente. No entanto, as moças estavam incomodadas com o modo como o cara-que-depois-resolveu-assumir-um-símbolo-esdrúxulo-como-nome estava conduzindo as coisas com o The Revolution, incluindo até mesmo não-músicos na banda – o que, convenhamos, não faz o menor sentido. Depois de muita briga, o The Revolution foi dissolvido e “Dream Factory” foi para a gaveta. Não satisfeito, Prince resolveu fazer seu novo trabalho por conta própria: começou a experimentar milhões de idéias, foi misturando-as com coisas das gravações anteriores e teria acabado com nada menos que um álbum triplo, chamado “Crystal Ball” e prontinho para lançar. Por um tempo, diz-se que a idéia era de um disco chamado “Camille”, na qual Prince não apareceria e ao invés dele seria adotada uma personagem com o nome do disco, mas a idéia foi engavetada e absorvida por “Crystal Ball”. Mas a Warner, gravadora do moço, não quis bancar um disco triplo, e Prince foi convencido a reduzir o esquema para um álbum duplo, que depois das necessárias “readequações” foi lançado com o nome “Sign O The Times”. Músicas soltas, oriundas das incontáveis sessões dos dois projetos, foram sendo lançadas no decorrer do tempo, mas nunca foi (e provavelmente nunca será) possível ouvir os dois discos planejados originalmente. De qualquer modo, para Prince a situação não é exatamente inédita: o homem tem pelo menos outros quatro álbuns menos cotados que pararam na gaveta, bem como alguns DVDs e quase 50 videoclips que nunca foram exibidos em lugar algum (!!!)…

Smile – Beach Boys / Brian Wilson, 1966 – Por fim, o VERDADEIRO “álbum perdido” mais importante da história do rock, uma lenda que durou quase quarenta anos e que coloca essa frescura de “Chinese Democracy” no bolso. O Beach Boys tinha acabado de lançar o histórico “Pet Sounds”, e imediatamente começou a compor um novo trabalho, no qual o gênio criativo de Brian Wilson se unia ao de um amigo compositor chamado Van Dyke Parks para a confecção de um ábum que pretendia ser “uma sinfonia juvenil para Deus”. Mas uma série de situações foi tornando cada vez mais penoso o processo de composição e de gravação – os demais músicos da banda, além de não irem muito com a cara de Parks, achavam tudo complexo demais e impossível de ser reproduzido ao vivo. A gravadora também tinha dúvidas se o material seria “vendável”, e junte-se a isso a situação, digamos, especial que Wilson vivia na época – o músico, que desde sempre teve alguns distúrbios mentais, estava mergulhando bonito no LSD, em uma combinação que não tinha muito como dar certo… Entre outras coisas, conta-se que o homem achava que o famoso produtor Phil Spector (o mesmo do “Let It Be” citado acima) queria matá-lo, e que chegou a mandar construir uma caixa de areia em pleno estúdio, para poder brincar um pouco durante as gravações! Em resumo, a coisa degringolou totalmente – e, embora tenha se chegado a fabricar 400.000 cópias de uma capa para o disco (das quais hoje supostamente existem no máximo doze), Parks pediu o chapéu, Wilson continuou viajando no ácido e o projeto acabou sendo abandonado. Em seu lugar veio “Smiley Smile”, um disco confuso e detonado pela crítica. Chegou a se falar em um lançamento de “Smile” em 1972, mas os músicos do Beach Boys logo perceberam que só Wilson conseguiria tirar algum sentido das horas e horas de músicas incompletas, gravações soltas e pequenas vinhetas que restavam das sessões oficiais do disco. Foram 37 anos de espera, o que elevou o disco a um status de lenda quase inacreditável. Faixas foram incluídas em discos subsequentes, outras vazaram em lançamentos não-oficiais, mas apenas em 2004 um recuperado Brian Wilson reuniu-se com Van Dyke Parks, regravou o material, fechou as lacunas e finalmente liberou para o mundo um “Smile” muito próximo do que havia sido planejado em 1966/67. Muitos dizem que o rock teria sido muito diferente se o disco tivesse saído quando originalmente planejado – há até quem diga que “Smile” é melhor que o “Sgt. Peppers” do Beatles, para vocês terem uma noção. Seja como for, hoje em dia temos chance de ter ao menos uma idéia do que ele poderia ter sido – não custa nada dar uma ouvida, portanto.

Ficamos por aqui, senão o post ficará ainda mais gigantesco e bem, enfim. Se gostarem, avisem a gente, que a redação promete uma parte 2 com outros discos que ficaram famosos justamente por não terem sido ouvidos por ninguém – e acreditem, ainda tem muuuuuito disco do qual se poderia falar aqui. Nos vemos por aí, de qualquer modo; até breve.